Aclamada pela crítica e público, a montagem retrata a violência e o abuso contra a mulher, ao encenar o episódio que constitui uma das páginas mais notáveis da literatura universal:  a compra de Nastácia Filíppovna – a mais genuinamente trágica e encantadora de todas as heroínas de Dostoiévski. Montagem contemporânea do clássico “O Idiota”, de Fiódor Dostoiévski, reúne artistas como Chico Pelúcio, Flávia Pyramo, Lenine Martins, Miwa Yanagizawa, Pedro Brício, Ronaldo Fraga e Cao Guimarães. O espetáculo retorna após três anos longe dos palcos em virtude da pandemia, para circulação por quatro cidades mineiras. Apresentação em Ipatinga será no dia 10 de setembro, no Centro Cultural Usiminas.

A imagem de Nastácia Filíppovna é a representação da forma mais profunda, complexa e pungente da luta de uma mulher contra a afronta à sua dignidade. Órfã desde a infância, Nastácia foi criada por um oligarca que a transformara em concubina aos 12 anos de idade. Uma mulher forte e de beleza estonteante, se vinga da sociedade patriarcal que acredita que o poder e o dinheiro são absolvição para a prática de abusos, humilhações, violência física e moral contra as mulheres. Nastácia termina morta em uma cama, com uma facada debaixo do seio esquerdo. A atualidade do romance “O Idiota”, publicado em 1869 por Fiódor Dostoiévski, deu origem à montagem inédita no teatro – Nastácia, premiado espetáculo que se apresenta pela primeira vez a Ipatinga, para única sessão no dia 10 de setembro (sábado), às 20h, no Centro Cultural Usiminas, com entrada franca (mediante retirada de ingresso no site Sympla (https://bileto.sympla.com.br/event/76310) ou na bilheteria do teatro).

Com direção de Miwa Yanagizawa e dramaturgia de Pedro Brício, o espetáculo une teatro e videoarte para contar a história de uma das mais instigantes personagens femininas da literatura universal. Para Flávia Pyramo, idealizadora do projeto e intérprete de Nastácia, a personagem é um exemplo de mulher que transformou fragilidade em força, que lutou por sua dignidade com muita coragem, mesmo vivendo um turbilhão interno e uma violência terrível. “Interpretar Nastácia é conviver com um coração disparado e olhos alagados. Toda vez que sou atravessada pelo pensamento de reencontrá-la, uma alegria extasiante vibra em todo canto do meu corpo, mas junto vem a dor de um estômago apertado, pois sei que contarei essa história olhando nos olhos de muitas protagonistas dessa tragédia real que é a violência contra a mulher”, afirma.

Nastácia fez estreia em agosto de 2019, em Belo Horizonte, com apresentações também no Rio de Janeiro, conquistando o Prêmio Shell (RJ) de Melhor Direção, o Prêmio APTR de Melhor Direção e o Prêmio APTR de Melhor Cenário, além de trinta e quatro indicações aos principais prêmios do país. Considerado pelo jornal O Globo um dos melhores espetáculos daquele ano, Nastácia recebeu três indicações ao Prêmio Shell do Rio de Janeiro – colocando a peça na liderança de indicações ao prêmio em 2019 –; seis indicações ao Prêmio APTR; cinco ao Prêmio Cesgranrio; oito ao Prêmio Botequim Cultural; seis ao Prêmio Copasa-Sinparc e seis ao Prêmio Cenym. Flávia Pyramo comenta que sabia da força da personagem e da potência da equipe da peça, mas não imaginava tamanho sucesso. “Nastácia é enorme! Dostoiévski é gigante! Mas eu estava mergulhada naquele universo, totalmente. Então, foi somente quando acabou, quando eu saí daquela imersão, que compreendi, de verdade, porque a obra foi criada. Quando olho para trás, fico impressionada com tudo o que aconteceu. Eu não tinha ideia da real dimensão desse trabalho. Às vezes penso: nossa, que coisa mais linda, e eu estava lá, no meio disso tudo!”, comemora a atriz.

Após a temporada no Rio de Janeiro, a circulação do espetáculo precisou ser interrompida em virtude da pandemia. Com patrocínio da Cemig, por meio da Lei Estadual de Incentivo à Cultura, o retorno aos palcos contempla a circulação por quatro cidades mineiras – São João Del-Rei, Uberlândia, Ipatinga e Belo Horizonte –, motivo de entusiasmo e comemoração para o elenco. “Voltar para o teatro depois de tudo o que vivemos coletivamente com a pandemia, sofrendo ainda a desvalorização da cultura e a descredibilização dos artistas no Brasil, é uma oportunidade de corroborar a relevância da função artística, além de avolumar o grito contra toda forma de opressão que a peça traz e que o momento exige”, diz Flávia Pyramo. Para Chico Pelúcio, “retornar com Nastácia é a sensação de preservar, de resiliência, de termos passado pelo isolamento, sobrevivido à pandemia. É estarmos dizendo para o público que estamos vivos, com esperança e poesia.”

Os artistas por trás de Nastácia são um destaque à parte. O atual elenco é formado por Chico Pelúcio (Totski), Flávia Pyramo (Nastácia) e Lenine Martins, substituindo o ator Odilon Esteves na interpretação de Gánia. A direção da peça é de Miwa Yanagizawa, e a dramaturgia de Pedro Brício. A consultoria teórica é de Paulo Bezerra, principal tradutor da obra de Dostoiévksi para o português, e Flávio Ricardo Vassoler; a direção de arte (cenário e figurino) é de Ronaldo Fraga; videoarte de Cao Guimarães; luz de Chico Pelúcio e Rodrigo Marçal; trilha sonora de Gabriel Lisboa e direção de movimento de Tuca Pinheiro. Flávia sublinha que o novo integrante da equipe, Lenine Martins, traz muito talento e uma forte presença cênica para o espetáculo. “Conheci o seu trabalho por meio de uma prima, também atriz, que me enviou o flyer de um solo, recomendando não o perder em cena: “Dos melhores que temos em BH”, disse ela. Assisti e adorei. Quando veio a informação de que o Odilon (que amamos!) não poderia participar desta temporada, pois estaria gravando no Rio no mesmo período, lembrei daquele ator que me deixou uma impressão instigante. O Lenine aceitou o convite e quando as pessoas souberam que ele faria o Gánia, os comentários foram os melhores e ainda mais animadores. O Odilon mesmo me escreveu: “Uau! O Lenine é referência para todos nós. Vai ser maravilhoso!”. Portanto, posso dizer que estou ansiosa para entrar em cena com ele”, diz a atriz.

Chico Pelúcio completa que Lenine Martins é um ator experiente e que a sua chegada nesta temporada traz renovação do espetáculo. “O Lenine tem vigor no palco e muita inteligência cênica. Com ele, vamos descobrir novas formas para Nastácia, além das descobertas maravilhosas que tivemos com o Odilon”, afirma.

Além da chegada de Lenine Martins ao elenco, Nastácia retorna à cena com novas espacialidades. “A festa não acontecerá na sala da casa de Nastácia, mas em um Teatro armado por ela, no estilo “Hamlet” (spoiler)”, brinca Flávia Pyramo, que finaliza com um alerta. “Mas a pior ‘novidade’ existe há séculos e foi divulgada pelo Ministério Público de Minas: diagnóstico revela que 90% das vítimas de feminicídio em Minas Gerais entre 2019 e 2021 não possuíam medida protetiva.”

A narrativa

A peça se passa no apartamento de Nastácia, na noite do seu aniversário. Ela deve anunciar seu casamento com Gánia, união articulada pelo oligarca Totski, homem que transformou Nastácia em concubina desde a adolescência e a submete a um verdadeiro leilão naquela noite. Flávia Pyramo conta que a ideia de fazer o espetáculo sobre uma personagem, com um recorte específico de um momento da sua história, veio do Kamas Ginkas, um diretor de teatro russo que montou a peça “KI from Crime”, uma adaptação do livro “Crime e Castigo”.

“Essa peça me marcou muito, eu já amava o livro e fiquei com muita vontade de fazer um espetáculo sobre a Sônia, uma personagem linda de ‘Crime e Castigo’, mas quando eu conheci Nastácia, fiquei louca por ela. A escolha do recorte na festa do seu aniversário se deu pela importância deste momento da história dela, o momento em que ela enfrenta seu algoz e toda a sociedade que a rodeia, e trata a todos e ao seu dinheiro (com o qual tentaram comprá-la) com o mais altivo desdém. Enquanto todos à sua volta chegam à escala mais baixa da sua dignidade por causa de dinheiro, para Nastácia ele é objeto de repulsa por ser também o seu desencontro com o mundo.”

Para Pedro Brício, repulsa e atração são forças conflitantes nos três personagens. Em relação ao desejo, ao casamento, ao dinheiro. “Na festa, além deles, há outros convidados que não vemos, estão subtraídos na encenação, são apenas mencionados. São aparências e ausências”, conta. Na dramaturgia, ele diz, os três personagens do texto contracenam e, também, monologam sobre suas estórias. A festa não acontece de maneira cronológica. Na imagem do tempo e na sua manifestação no palco, os limites também estão borrados. “O passado irrompe de repente e toma conta da cena. A força do que aconteceu antes da festa está ali. Entendemos claramente a estória; a potência do drama dos personagens é o que nos arrebata, por ser tão vertiginoso, por se transformar de uma hora para outra, diante dos nossos olhos.”

Passado e presente

Concebido entre 1867 e 1869, “O Idiota” está longe de ser anacrônico. Segundo o Datafolha, uma em cada quatro mulheres acima de 16 anos afirma ter sofrido algum tipo de violência no Brasil, durante a pandemia de Covid. Isso significa que cerca de 17 milhões de mulheres (24,4%) sofreram violência física, psicológica ou sexual no último ano. Para a diretora do espetáculo, Miwa Yanagizawa, a arte é um espaço em que o artista pode, como mediador, reumanizar estatísticas devastadoras como essas. “Às vezes, os números são terríveis, eles nos espantam sem tocar. São séculos de opressão e crueldade contra as mulheres e, muitas vezes, acho que não nos vemos responsáveis pela manutenção de tais tragédias humanas. Tomamos distância como se elas pertencessem a um outro universo, como coisas que acontecem somente fora de nossas casas. Então, lemos os números e seguimos nossas vidas repetindo gestos que alimentam a irracionalidade e a negligência com os outros, mas, “sem perceber”, estamos colaborando com o crescente e alarmante número da violência contra a mulher, por exemplo.”

“A história de Nastácia, como tudo em Dostoiévski, é de uma espantosa atualidade”, sublinha Paulo Bezerra. Primeiro ela é vítima de um grão-senhor e gentleman pedófilo, que se vale do repentino estado de miséria dela e do muito dinheiro que possui e a transforma em concubina aos doze anos de idade, sem sofrer qualquer censura da sociedade: é o poder do dinheiro falando mais alto. Depois, já adulta, é vítima de um amante paranoico, que, por não conseguir conquistar seu amor, simplesmente a mata. Portanto, duas formas de crime contra a mulher: o crime alicerçado no dinheiro e o crime derivado da impossibilidade de conquistar o coração e a mente da mulher. Ou seja, o crime motivado pelo sentimento de posse, pela tentativa de coisificação da mulher.”

Bezerra destaca que hoje, no Brasil, a mulher é vítima de várias formas de violências, uma delas, a mais frequente, deriva do tratamento da mulher como posse, como objeto, como coisa. “Assim, a principal característica de um clássico é a de transcender os valores do seu espaço e do seu tempo e ser lido de maneira nova e atual em outras épocas e outras culturas à luz dos valores dos novos tempos. O papel da arte, sobretudo da arte teatral, é o de trazer as questões levantadas pelos clássicos para a atualidade e recriá-las à luz da realidade e da cultura locais, permitindo ao espectador, no caso o brasileiro, associar o destino de Nastácia ao de muitas mulheres brasileiras tão vítimas da violência como ela.”

“Leia os jornais, por favor, porque a conexão visível entre todos os assuntos, gerais e particulares, está ficando cada vez mais forte e mais óbvia”. Flávia Pyramo relata que foi assim que escreveu Dostoiévski sobre o caso (que estampou os jornais da Rússia no séc XIX) da adolescente Olga Umiétskaia que viveu sob tirania e desumanidade familiar, e acabou inspirando a criação de Nastácia Filíppovna. “São os conteúdos jornalísticos de hoje, de Minas Gerais, do Brasil, do mundo, que denunciam a trágica realidade em que ainda vivemos”, ressalta.

Ficha Técnica | Nastácia

Dramaturgia: Pedro Brício | Tradução: Paulo Bezerra | Direção: Miwa Yanagizawa | Elenco: Chico Pelúcio, Flávia Pyramo e Lenine Martins | Direção de arte (Cenário e Figurino): Ronaldo Fraga | Videoarte: Cao Guimarães | Iluminação: Chico Pelúcio e Rodrigo Marçal | Trilha sonora e composição: Gabriel Lisboa | Direção de movimento: Tuca Pinheiro | Operador de luz: Edimar Pinto, Jésus Lataliza e Rodrigo Marçal | Operador vídeo: Ralph Antunes | Operador de som: Colibri | Consultoria teórica: Paulo Bezerra e Flávio Ricardo Vassoler | Programação visual: Paola Menezes | Fotografia: | Ana Colla, Cao Guimaraes e Guto Muniz | Produção executiva: Luiza Fonseca | Produção local: Leila Cunha (Fino Trato) | Direção de produção: Agentz Produções | Coordenação geral: PyrAmo ProArte

Premiações:

• PRÊMIO SHELL (RJ) de Melhor Direção (Miwa Yanagizawa);

• PRÊMIO APTR de Melhor Direção (Miwa Yanagizawa);

• PRÊMIO APTR de Melhor Cenário (Ronaldo Fraga).

Indicações aos prêmios teatrais:

●        PRÊMIO SHELL RJ (líder de indicações) = Melhor Direção; Melhor Cenário e Melhor Figurino.

●        PRÊMIO APTR = Melhor Espetáculo; Melhor Autor; Melhor Direção; Melhor Atriz; Melhor Cenário e Melhor Figurino.

●        PRÊMIO CESGRANRIO = Melhor Direção; Melhor Atriz; Melhor Ator; Melhor Cenário e Melhor Figurino.

●        PRÊMIO BOTEQUIM CULTURAL = Melhor Espetáculo; Melhor Dramaturgia; Melhor Direção; Melhor Atriz; Melhor Ator (2); Melhor Cenário e Melhor Figurino.

●        PRÊMIO COPASA-SINPARC = Melhor Direção; Melhor Atriz; Melhor Ator; Melhor Cenário; Melhor Figurino e Melhor Iluminação.

●        PRÊMIO CENYM = Melhor Texto Adaptado; Melhor Ator; Melhor Direção de Arte; Melhor Qualidade Artística de Produção; Melhor Programação Visual e Melhor Preparação Corporal.

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