Abdullah (nome fictício) ainda busca entender o que ocorreu 20 dias atrás, quando o barco-pesqueiro Pylos naufragou, a 47 milhas náuticas (87km) da costa do Peloponeso, na Grécia. “Estou com o coração partido”, desabafou ao Correio. Morador de Azad Kashmir, na Caxemira paquistanesa, ele tem poucas notícias sobre uma das maiores tragédias registradas no Mar Mediterrâneo. “Cinco pessoas de minha convivência estavam a bordo, incluindo um parente e dois de seus amigos. Apenas uma delas sobreviveu. Não quero mais falar sobre isso”, pediu.

Uma tragédia de anônimos, gente que deposita seus sonhos e sua esperança em uma travessia perigosa, à mercê de contrabandistas humanos movidos pela ganância e pelo desprezo com a vida alheia. Mas também de símbolos dolorosos: a pilha de coletes salva-vidas depositada nas praias e no lixão de Metímna, na ilha grega de Lesbos; o corpinho inerte de Alan Kurdi, 2 anos, vestido com a camiseta vermelha, bermuda azul e de tênis, largado sobre a areia de Bodrum, na Turquia. 

De acordo com a Organização Internacional para as Migrações (OIM), 27.565 migrantes morreram no Mar Mediterrâneo desde 2014 — neste ano, foram 1.807, incluindo os 646 ocupantes do Pylos. Na última quinta-feira, um barco que partiu de Sfax (Tunísia) com 46 migrantes procedentes da África Subsaariana (Costa do Marfim, Burkina Faso e Camarões) virou nas imediações da ilha italiana de Lampedusa. Entre os 40 desaparecidos, estão sete mulheres e um recém-nascido. 

Para a trabalhadora humanitária grega Ana Pantella, 31 anos, que atuou como gerente de comunicações dentro de barcos de busca e de resgate da ONG Médicos sem Fronteiras, o cemitério sem covas existe por culpa da União Europeia (UE). “Eles querem enviar uma mensagem aos solicitantes de asilo e aos migrantes de que serão abandonados para se afogarem. É uma medida de dissuasão”, afirmou ao Correio. Ela lembrou que, no passado, havia realocamentos e reunificações familiares, mas eles quase pararam. Então, as pessoas tomaram rotas ilegais e perigosas. 

Responsabilidade

Pantella defende que a União Europeia desenvolva um sistema continental que viabilize a migração legal e rotas seguras. Ela entende, no entanto, que cada país deve cumprir com sua parte da responsabilidade, e não deixar o fardo para a Grécia, a Itália e a Espanha. Tia de Alan Kurdi, Fatima Kurdi acusou a comunidade internacional de fracassar ao lidar com a questão migratória no Mediterrâneo. “Precisamos nos focar na causa raiz, naquilo que faz com que essas pessoas se coloquem em uma situação de perigo. Não podemos continuar a ver esses afogamentos e virar as costas para essas pessoas”, disse à reportagem, por telefone.

Para Fatima, os países europeus precisam investir recursos nas nações mais pobres, de onde partem os migrantes. “Até lá, os barcos de resgate deveriam receber a permissão para ir até o alto-mar e salvar a vida dessas pessoas”, observou. “Desde 2015, quando meu sobrinho morreu, quantos seres humanos desapareceram no mar? O mundo continua em silêncio. Faço um chamado para que os mais ricos encontrem uma solução e ofereçam dinheiro, para que os mais pobres não fujam de casa.”

A tia de Alan acrescentou que entende o motivo pelo qual as pessoas abandonam seus países. Ela relatou que visitou um campo de refugiados em Erbil (no Curdistão turco), onde conversou com vários deles. “O modo como eles vivem é de cortar o coração. Tudo o que têm é a esperança”, salientou. “Ao retornar a 2 de setembro de 2015, quando o mundo inteiro ficou chocado com a imagem de meu sobrinho Alan Kurdi, o menino na praia, eu me lembro que todos ficaram com os olhos cheios de lágrimas, incluindo líderes internacionais. Todos diziam que aquela tragédia seria a última. Peço a esses líderes: mantenham suas promessas! Se meus próprios familiares, ao fugirem da guerra na Síria, tivessem uma rota segura e legal ou um barco para salvá-los, estariam vivos e felizes agora”, lamentou. Além de Alan Kurdi, morreram no naufrágio do pequeno bote a mãe do menino, Rehana, e o irmão, Ghalib, 4. 

Padrão

Advogado de direitos humanos em Chios, na Grécia, Alexandros Georgoulis, 37 anos, trabalhou no passado representando réus que enfrentaram acusações de transferência ilegal de cidadãos sem o direito de entrar na Grécia, de provocarem naufrágios ou de participarem em organizações criminosas. Ele explicou ao Correio que os naufrágios seguem um padrão. Na maioria dos casos, afirma, há o envolvimento das autoridades policiais do porto do país de embarque. “Algumas vezes, elas até mesmo acompanham os botes de migrantes até que alcancem águas internacionais”, advertiu. 

Recentemente, o Tribunal Trilateral de Apelações Criminais do Dodecaneso (grupo de ilhas gregas no leste do Mar Egeu) aceitou a objeção apresentada por Georgoulis e sua equipe sobre a incompetência dos tribunais gregos em um caso em que um barco partiu do Líbano e não pôde ingressar em águas territoriais gregas. A embarcação foi obrigada a ficar em águas internacionais, enquanto seu destino final era a Itália. “Em qualquer outro caso, o nosso país assumiria o papel de guarda de fronteira internacional, com tudo o que isso implica. O naufrágio do Pylos não foi o primeiro e, provavelmente, não será o último. A rígida política de fronteiras da Europa leva as pessoas a adotarem nova rota de migração, chamada calabresa, 100 vezes mais longa que o ponto de movimento mais próximo e, portanto, 100 vezes mais perigosa. O uso desta rota tem se multiplicado”, lamentou Georgoulis.

Porta-voz da Organização Internacional para as Migrações (OIM), Flavio Di Giacomo advertiu que “há naufrágios dos quais não ficamos sabendo”. Citado pela agência de notícias France-Presse, ele pediu “patrulhas de barcos europeus” para monitorar a rota tunisiana e a rota líbia. “Do contrário, seremos testemunhas de um desastre neste verão”, advertiu. Por sua vez, Chiara Cardoletti, porta-voz do Acnur na Itália, sublinhou que “contar com um mecanismo de resgate no mar, coordenado e compartilhado entre os Estados, é uma questão de consciência”. “É inaceitável seguir contando mortos às portas da Europa.”

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